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Carta a Humanos

Cristina Voronin

Caro desconhecido,

Esta carta é para ti.

Na verdade, tenho uma questão para te colocar: tens sido verdadeiramente observador ultimamente?

Sei que parece uma pergunta absurda, sem senso até, mas espera um pouco que já me explico. Clique clique plim bzz bzz plim clique clique – isto é o que nos rodeia 24/7, o que nos assombra independentemente do local ou da hora; provavelmente estás a pensar que vou falar de tecnologia e o impacto que ela tem sobre nós e de certa forma acertaste, mas quero levar-te a navegar por ideias diferentes. Somos informados que principalmente a nossa geração passa imenso tempo à frente de um ecrã, que somos em maior ou menor grau dependentes de tudo o que cabe na vasta biblioteca que é a tecnologia. A triste realidade é que não é só a nossa geração. Estejas onde estiveres, para o que estás a fazer, para de ler e repara no que te rodeia. Se estiverem outras pessoas algures por aí, repara no que estão a fazer. Estão a tirar fotos? Talvez mandar mensagens? Ver uma série/filme no telemóvel? Agora conta quantos à tua volta estão de cabeça baixa a olhar para um ecrã. O que é que isso te faz sentir caro desconhecido?
Lembras-te quando eras criança e brincavas na rua até caíres de sono?Lembras-te quando não percebias porque o mar é azul? E quando não conhecias nem entendias nada deste mundo, podendo apenas observá-lo? Pois bem, calça as tuas galochas, veste a tua capa da chuva, dá-me a mão e vamos partir numa aventura e brincar nas poças de água! Se não estiveres num local com muitas pessoas à tua volta, lembra-te deste jogo e treina-o quando puderes, mas por enquanto vou levar-te à Avenida da minha imaginação numa tarde de domingo. Olha para as pessoas, não, não é simplesmente olhar, fica atento e solta a tua criatividade. Vai ali um casal
de idosos de mãos dadas, pensa nas vidas que levaram até as suas mãos enrugarem; terão 2 filhos? Mais? Que te parece? Antes de virarem a esquina, repara na forma carinhosa como olham para o outro, como comunicam. Hmm foquemo-nos agora naquela senhora a vender castanhas. Sente o cheiro a fumo a emanar do seu cabelo quando o solta à noite em casa, olha a postura dela ligeiramente curvada por estar tanto tempo de pé, as bochechas coradas por causa do calor do fogo apesar do frio. Como achas que se chama? Talvez Luísa? Quiçá Maria ou Adelaide? E de onde é? Chamo a tua atenção para aquele grupo de turistas que parecem estar em Braga pela primeira vez e acham-na simplesmente deslumbrante. Consegues olhar para a cidade da mesma forma como eles a veem, isto é, como se fosse a primeira vez que colocasses aqui os pés? O que achas que chamaria a tua atenção então?

Vamos caminhar da avenida à central de camionagem, quero mostrar-te algo, mas até lá chegarmos aprecia a música que o artista de rua está a tocar, deixa-te atravessar pela melodia. Pisa o chão molhado e escorregadio depois da chuva, olha para ali! Ai que aquela pessoa ia caindo! Estabilizou, está a olhar-te envergonhada nos olhos, sorri-lhe, ri-te à vontade! Certifica-te de que ela está bem, pergunta se precisa de ajuda. Está tudo bem, podemos continuar. Levanta a cabeça, o que vês? Céu nublado? Às vezes as nuvens fazem formas engraçadas, consegues identificar alguma? Aquela ali parece um pinheiro e ali mais à esquerda um cavalo. Sabes? Uma vez vi uma nuvem que fazia um coração, foi mesmo bonito.

Ó meu deus, já chegámos! Nem dei conta…

Vamos descer aos cais, vamos presenciar vidas. Senta-te neste banco caro desconhecido, vamos cá ver…repara neste senhor que está sentado ao nosso lado. Para onde irá? Será uma viagem de trabalho? Poderá ir para o aeroporto para apanhar um avião para emigrar? E ali ao fundo? Parece-me ser uma mãe com a sua filha, estão tristes, presumo que uma delas tenha de se ir embora. É a filha, vai para Lisboa onde deve estudar, não sei. Está a pousar os seus pertences no autocarro enquanto a mãe chora silenciosamente. Elas partilham um último abraço antes do transporte partir. Não te apetece ir consolar a senhora? Assegurá-la que a filha voltará em breve? A viatura 40, Expresso Braga vai dar entrada no cais 10. Mas que coincidência! É mesmo à nossa frente. Afinal o senhor que estava ao nosso lado estava à espera da namorada! Não reparámos, mas ele tinha um ramo de flores pousado no banco do outro lado. Vê como caminham apressadamente para se abraçar, partilham um beijo, ele pergunta-lhe se a viagem correu bem ao que ela responde que tinha muitas saudades dele e que tem fome. Não achas isto fascinante, desconhecido? Estás envolto em vidas, histórias, momentos únicos e irrepetíveis. Pode ser somente um idoso a ler um jornal num café ou uma jovem a comprar meias
para os irmãos, mas são estas pequenas coisas do dia a dia que nos preenchem. Por isso da próxima vez que estiveres num lugar público deixa o telemóvel de lado, emerge do mundo virtual para te maravilhares com o real. Repara nos sorrisos e lágrimas, nos abraços e discussões ou até mesmo na forma como uma folha cai da sua árvore.

Vou terminar por aqui, não te vou roubar mais tempo. Espero, genuinamente, que tenhas gostado da nossa aventura, mas antes de partir repetirei a minha pergunta: tens sido verdadeiramente observador ultimamente oh desconhecido?

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