Inês Maia
Bebi da fonte da sociedade a terrível ideia de que para se ser médico há que ser frio, indolente e indiferente. Impuseram-me a necessidade de ser impassível e alheio à dor dos outros para me concretizar no meio onde todas as minhas paixões convergiam – a Medicina.
Fui sendo guiado pela gente contemporânea e pela ideia arrasadora de que “nada há de artístico na medicina, do mesmo modo que na arte não se encontram o rigor da anatomia ou a precisão implacável de um bisturi”. Impuseram-me a fé retrógrada de que um médico não tem nada de artista, nem um artista pode sequer aspirar a ser médico! Como se a Arte e a Medicina fossem realidades intocáveis, divergentes e irreconciliáveis!
Fizeram-me crer que para ter uma teria forçosamente de abandonar a outra. Abateu-se sobre mim um véu de desconsolação tremenda. Se por um lado o estudo da Medicina era o ponto onde convergiam todas as minhas vontades, eram o cultivo e a apreciação da Arte que me davam as ferramentas para traçar e saborear esse caminho. Sonhei, assim, que me vedavam o caminho, que a vida se repartia e algo me falhava. Julguei que perdia uma parte de mim ao ter de abdicar da outra. Com o tempo veio a sabedoria e a certeza de que o médico é o mais completo dos artistas, tendo sob seu domínio variadíssimas artes e modos de expressão, cujo uso astuto lhe trará a excelência da sua prática, ao invés de uma mediocridade contentável. A teoria e a ciência fizeram de mim um bom médico, capaz, crítico, racional e trouxeram as ferramentas do meu trabalho. A sensibilidade, os valores, a ética e a minha humanidade fizeram-me excelente, pois trouxeram-me a sabedoria de saber quando e como aplicar o conhecimento engenhoso da melhor forma possível. Privar os aspirantes à medicina da sua humanidade sensível é educá-los para serem sombras mecânicas e robotizadas no teatro sempre imprevisível e heterogéneo da condição humana!
Nós, médicos, somos os verdadeiros maestros da incrível e, por vezes, domável orquestra das sensações e emoções! O controlo sapiente das nossas emoções é o que nos permite exercer com astúcia, reverência, destaque e excelência a verdadeira noção da Medicina! Saber distinguir o momento de ser-se empático e dar aos outros um pouco da nossa humanidade, porque a deles lhes falha, esvanece ou suplica pela nossa; ser firme e implacável na urgência de um caso cujo desfecho depende unicamente dos nossos passos e gestos seguintes; aprender a arte de ouvir, explicar e orientar; abandonar as dores e a culpa imerecida; viver com gratidão os sucessos alcançados.
Hoje, sou médico. Hoje, vivo do que a arte da sensibilidade e o conhecimento da ciência me proporcionam. Em tudo vejo Arte, do mesmo modo que tudo me reaviva a chama de saber Medicina.
Os restantes, os que impuseram a má-fé de restringir um médico à bata branca da insensibilidade e à armadura esquálida da frieza contra todos os afetos, enganaram-me e enganaram-se! Nada há de mais artístico do que a apreciação holística da condição humana aos olhos da prática médica!
O ser humano, o objeto da nossa ciência, é essencialmente deslumbrante: oculta a imensidão secreta da anatomia, a complexidade dos processos bioquímicos infalíveis, a disposição majestosa e rigorosa dos órgãos, a hierarquia das células aos sistemas orgânicos; e debaixo da matéria imensa que o constitui, oculta mil sonhos e vontades, emoções transbordantes, paixões poéticas, aspirações ilustres e motivos, sensações, pensamentos e ideias que nos tornam verdadeiramente imortais e infinitos!
Rejeitavam-me como médico, porque era amante das letras, da pintura, da música e de todas as demais formas de arte. Esqueciam-se que a sensibilidade das palavras me trouxera a capacidade de explicar, orientar, lastimar e confortar os que mais precisavam. Esqueceram-se que nos romances literários e nas telas renascentistas e contemporâneas, descobri as facetas e as sensações, o pensar e as diferentes formas de sentir, viver e idealizar do ser humano! Esqueceram-se que a música me emprestou a capacidade de escutar, em vez de ouvir. Esqueceram-se que a arte me deu um conhecimento maior da essência humana, para a qual nenhum catedrático me conseguiria despertar.
E se descubro nas entrelinhas de um soneto os sentidos ocultos das palavras, reconheço com igual espanto e deleite as minúcias anatómicas da fisionomia humana! Tudo se articula e organiza, cada órgão ocupa o seu lugar, assim como para as palavras existem ordens pré-estabelecidas. A excentricidade de um verso produz no leitor o mesmo delírio e desconcerto que uma alteração celular inconveniente num tecido humano. A incisão de um bisturi é tão implacável e cortante como uma expressão literária brusca e dilacerante. As palavras cavalgam outras, tecendo uma teia emaranhada de sentidos e filosofias, aparentemente caóticos, mas extremamente organizados e com sentido. Assim se dispõem todos os órgãos, formando ângulos e posições curiosas, assumindo a paleta de cores de uma tremenda e sufocante confusão que nos habita e contém todo sentido da nossa existência!
A sensibilidade, a empatia e a compaixão, a par com tantas outras virtudes humanas, fizeram de mim médico, ao invés de um mero mesquinho aspirante à medicina. Trouxeram-me clareza e despertaram em mim sensações vorazes e tenazes, fizeram-me chorar a morte e o nascimento, lastimar as perdas e recuperar as culpas da derrota e o orgulho das vitórias. Trouxeram-me uma humanidade que quase me obrigaram a esquecer.
Fizeram de mim Homem para servir toda a humanidade.