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O Mito de Sísifo

Eva Ferreira

“Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde a pedra caía de novo, em consequência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.”

O que faz deste mito trágico é a consciência de Sísifo. Onde estaria a sua tortura se a cada passo dado conseguisse sentir concomitantemente esperança? Alguns trabalhadores baseiam diariamente a sua vida nas mesmas tarefas. Será a sua vida trágica nos momentos em que tomam consciência desta? Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder a uma questão fundamental da filosofia. Para isso, precisamos de perceber se a vida do Homem no mundo tem algum sentido. Para Camus, o absurdo não está no homem nem no mundo, mas na existência do homem neste mundo. Conseguiremos então imaginar Sísifo feliz neste absurdo?

Camus pretende saber se, aceitando viver sem esperança, num mundo sem sentido e absurdo, é possível consentir em trabalhar e criar, num constante divórcio entre o espírito que deseja e o mundo ininteligível que o desilude. Quer saber se consegue pensar e viver com estas feridas abertas ou se este raciocínio leva à recusa da vida, ao suicídio. É aqui que surge a ideia da revolta como sinónimo de vida. O suicídio seria uma renúncia, uma aceitação passiva do absurdo. Viver exige mais coragem e uma maior revolta. Pelo contrário, o suicídio seria uma precipitação para o inevitável futuro do homem, que é a certeza da morte. Da mesma forma, a religião surge como um enfraquecimento do homem, como uma tentativa de ganhar esperanças num mundo sem sentido. Camus defende que, para não cairmos numa “cegueira voluntária”, devemos negar qualquer consolação sobrenatural, vivendo numa permanente lucidez, no que considera ser a “realidade nua”.

Assim, a consciência e a revolta são os pilares desta forma de viver, aliados à liberdade e à paixão que resultam do estado de lucidez e do pensamento com clareza. Para além disso, Camus acredita que, esgotando todas as experiências no campo do possível, conseguiremos originar forças para viver numa realidade que, por vezes, ultrapassa o nosso entendimento. Nietzsche escreve: “Obedecer por muito tempo e na mesma direção: com o tempo, resulta daí qualquer coisa pela qual vale a pena viver nesta Terra, como por exemplo a virtude, a arte, a música, a dança, a razão, o espírito, qualquer coisa que transfigura, qualquer coisa de requintado, de louco ou de divino.”, mostrando como o homem absurdo vive.

Desta forma, talvez consiga imaginar Sísifo feliz. Também nós, muitas das vezes, realizamos automaticamente tarefas, sem conseguirmos libertar-nos destas. Camus escolhe Sísifo porque este odeia a morte. De facto, Sísifo, na mitologia grega, foi condenado a realizar o mesmo trabalho eternamente, pois engana a morte duas vezes, vivendo uma longa vida e morrendo de velhice. Também para o homem revoltado a morte é a exaltação da injustiça. O homem parece estar antecipadamente vencido na vida, já que o seu final é certo. Resta-lhe viver com paixão, afirmando as contradições deste mundo sem cair na ilusão e em crenças que tentam explicar o absurdo. Esta consciência poderia levar o ser humano à desistência. Contudo, tal como na situação de Sísifo, a nossa desgraça neste mundo desrazoável pode acompanhar a nossa vitória.

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