Pedro Gonçalves
Vivemos tempos otimistas, tempos onde a indiferença é vista como uma atitude contra produtiva para o bem-estar da sociedade. Seja por razões culturais, educacionais ou pessoais, a discriminação não deixa de ser discriminação. É por isso que desde 2012, no dia 11 de outubro, celebramos o Dia Mundial da Rapariga, relembrando a necessidade de apoiarmos as crianças e jovens do sexo feminino, independentemente do seu país de origem. Os objetivos são claros: diminuir o abandono escolar precoce, impedir o casamento forçado e qualquer forma de escravatura (sexual ou não) e punir de igual forma o assédio e a violação. Visto tratar-se de um tópico muito abordado e consequentemente banalizado, focar-nos-emos apenas numa das muitas atrocidades cometidas, a Mutilação Genital Feminina.
A Mutilação Genital Feminina (MGF) consiste na remoção parcial ou total da genitália externa da rapariga/mulher, por razões não médicas, o que se traduz numa grave violação dos direitos humanos. Esta prática é habitualmente realizada quando as vítimas ainda são crianças ou jovens, por vontade da família e do grupo social de onde estas são originárias. Esta prática pode compreender vários níveis, desde a remoção do clitóris e/ou excisão completa dos pequenos lábios vaginais, ao encerramento da vulva. Neste último procedimento, também conhecido como Infibulação ocorre amputação do clitóris e dos pequenos lábios, os grandes lábios são seccionados, aproximados e suturados, sobrando uma minúscula abertura para a passagem de urina e sangue menstrual. Esse orifício é mantido aberto por um pau de madeira ou palha. As pernas devem ficar amarradas durante 2 ou 6 semanas, levando ao desaparecimento da vulva. Caso a mulher se case, esta será “aberta” pelo marido (usando por vezes uma faca) ou por uma “matrona”, mulher mais experiente no assunto. Mais tarde, quando se tem o primeiro filho, essa abertura é aumentada para permitir o parto, já por si complicado visto que o tecido cicatricial não distende. Para além da atrocidade que estes procedimentos refletem, surgem ainda muitas outras complicações. Por se tratarem, muitas vezes, de intervenções com recurso a lâminas e outros instrumentos não esterilizados numa região anatómica de extrema sensibilidade, é natural o surgimento de dores intensas nas vítimas, dificuldade na eliminação da urina e fluxo menstrual, hemorragias fatais e infeções recorrentes, complicações nos partos, dificuldades e dor nas relações sexuais e, de extrema importância, as severas consequências a nível psicológico.
A pergunta que todos fazemos é “Porquê?”, porque é que estas crianças e raparigas são sujeitas a estas práticas. Ora a MGF é nada mais, nada menos que uma tentativa de controlar a sexualidade da mulher, alicerçando-se nos ideais de pureza, modéstia e estética, uma tradição enraizada nas comunidades onde a desigualdade de género é abertamente aceite. Para quem executa a MGF, geralmente outras mulheres, nomeadamente mães e avós, esta é vista como motivo de honra e orgulho, com o intuito de evitar a exclusão social das suas crianças e jovens. Infelizmente, para as mulheres que deixam a cultura que pratica MGF, é comum o desenvolvimento de sentimentos de humilhação, impotência, vergonha e traição familiar quando descobrem que a sua condição não é a normal.
Outro dos problemas nesta prática está na crescente medicalização da MGF. Isto leva à falsa ideia de que esta intervenção sem quaisquer benefícios médicos tem legitimidade, o que contribui para a sua institucionalização e no pior dos cenários a disseminação da MGF em grupos culturais que atualmente não a aplicam.
Falemos agora de números. De acordo com os dados disponíveis, a MGF é praticada em cerca de 28 países africanos e muitos outros no Médio Oriente e Ásia, não esquecendo as comunidades de imigrantes na Europa, América e Austrália. A UNICEF partilhou em 2016 uma estimativa de 200 milhões de vítimas de MGF em 30 países e salienta que, desses 200 milhões, mais de metade dos casos referem-se a 3 países: Indonésia, Egito e Etiópia.
Em Portugal, segundo a Associação para o Planeamento da Família, há mais de 8 000 mulheres, raparigas e meninas que foram vítimas ou que estão em risco de serem sujeitas à prática. Os registos oficiais, baseados maioritariamente nos casos que chegam aos hospitais, apontam para cerca de 6 500 mulheres mutiladas, praticamente todas elas oriundas de comunidades muçulmanas de origem africana, na sua maioria da Guiné-Bissau, e também da Guiné-Conacri, Senegal e Egito. Os casos são muitas vezes detetados por médicos apenas quando as mulheres e raparigas já apresentam complicações psicológicas, sexuais, obstétricas, urológicas ou ginecológicas. Em 2015, a prática de MGF passou a ser crime punível por lei com pena de prisão de 2 a 10 anos. São também considerados crime todos os atos preparatórios de MGF, nomeadamente, levar as mulheres ou crianças a viajar para fora do país com o objetivo de serem submetidas a MGF. Ainda este ano, uma cidadã guineense residente em Portugal, foi condenada a 3 anos de prisão por ter submetido à prática uma filha, na altura com um ano de idade, durante uma estadia de três meses na Guiné-Bissau, em 2019. Este foi o primeiro julgamento por este crime em Portugal.
Termino apelando a todos que não caiam na tendência de banalizar, esquecer ou relativizar o assunto que agora foi debatido. Ao contrário daquilo que pensamos, esta não é uma realidade distante com qual não nos devamos preocupar. Esta, infelizmente, é uma verdade presente em pleno séc. XXI e é crucial que nos insurjamos contra estas práticas ansiando, num futuro próximo, falar destas temáticas apenas como factos históricos. É assim e só assim que o Dia Internacional da Rapariga deve ser celebrado, consciencializando-nos da dura realidade que muitas crianças, jovens e mulheres atravessam.