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Cancelamento da cultura

Diogo Cruz

É inegável o impacto que a internet teve no nosso quotidiano enquanto civilização. As redes sociais protagonizaram uma união cultural que há largos anos atrás seria imaginável. Atualmente conseguimos partilhar ideias, visões e opiniões à distância de um click. A forma abrupta que como isto foi incorporado na nossa vida leva a que ainda hoje estejamos a descobrir fenómenos causados por estas ferramentas. Fenómenos esses que podem ilustrar o melhor e o pior que a humanidade tem para oferecer. O que me vou debruçar hoje cai numa área de tez acinzentada relativamente a este dualismo. Trata-se da cultura de cancelamento e suas extrapolações.

Tudo começou por volta da altura do movimento “me too” em 2017. Muito sumariamente houve uma série de mulheres vítimas de violência sexual que sentiram-se à vontade para denunciarem os seus agressores apoiadas num movimento gerado nas redes sociais. Este movimento levou à detenção de Harvey Weinstein que foi condenado a 25 anos de prisão por dois crimes sexuais. O sucesso deste movimento prendeu-se na fácil capacidade de agregação apenas possibilitada por este vínculo. Movimentos semelhantes insurgiram-se passado pouco tempo arrastando tanto nomes sonantes com carreira ativa como Kevin Spacey, Louis Ck,  como lendas passadas como Michael Jackson. Todos por casos de semelhante natureza ainda que obviamente de diferentes contornos. Todos eles viram a sua carreira ameaçada de igual forma pelos seus atos mas a mensagem estava passada. Abusos desta ordem não serão permitidos. Não idolatraremos pessoas que tenham incorrido em tais práticas.  Até aqui o cancelamento era um serviço, algo que as massas tinham conquistado através das plataformas ao seu dispor para se revoltarem enquanto fãs e consumidoras da obra dos artistas. Justiça parecia estar a ser feita e os apoiantes cibernautas sentiam-se integrados nos movimentos que puniam os famosos. Um clic e  estaria o alvo do tweet mais próximo de ser exposto e, consequentemente, cancelado. O grande problema associado a este recém conceito prendia-se na sensação de poder que o comum utilizador carregava nos dedos e na impetuosidade das redes sociais. O laxismo acabou por se instalar e hoje temos artistas K- Pop a serem cancelados por terem sido alegadamente bullies nos tempos de escola. O castigo é o mesmo: cancelado. A falta de rigor no julgamento social protagonizado por estas bolhas virtuais acaba por pôr em causa a mensagem transmitida aquando do seu surgimento. O assédio de menores de Kevin Spacey de repente tem o mesmo tratamento que um indivíduo com uma infância desviada dos eixos morais. Não creio que tenha sido esse o intuito aquando a criação desta mobilização coletiva. Observa-se quase que uma instauração de crescentes supremacias morais.

É do nosso conhecimento que artistas que hoje são referências do nosso património cultural eram gente carregada com uma bagagem de imoralidade pesadíssima. Que respondam pelos seus crimes em vida como qualquer cidadão mas que a sua obra não seja perturbada pelos erros do seu criador. Seria uma pena que cada um de nós visse a nossa legitimidade artística posta em causa por ter passado uma rasteira ao João Carlos no 8º ano. Saímos todos a perder com a soberania moral que se começa a instalar nos círculos que frequentamos diariamente.

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