João Afonso Santos
O “eu” é um tópico estranho, por nos ser simultaneamente tão próximo e tão enevoado.
Podemos viver a vida sem pensar nisso, continuando a ser o que somos, talvez assim de forma mais assertiva e sólida. Podemos também abolir a complexidade e adotarmos uma narrativa e um conjunto de características para formar um quadro de quem nós somos, contudo creio que essa obra talvez se cinja mais à apresentação e à identidade na relação com o outro, pecando numa simplicidade confortável.
Tentar perceber as causalidades por detrás de quem somos é uma tarefa hercúlea, é perspetivar um abismo tão eminente, repleto de histórias, momentos, pessoas, lugares, uma quantidade avassaladora de forças que poderá levar a uma resposta de curiosidade, evasão, ou paralisia silenciosa. Atravessar esse bosque pode ser frutuoso (perceber os porquês de quem somos é uma componente da inteligência emocional), pode ser também extremamente doloroso, até destrutivo, e portanto creio que não se deve glorificar nem demonizar de um modo geral atitudes de evasão à auto-exploração. Claro que existem pessoas cuja vida na sua totalidade é evasão e negação, e apesar de ,em certos casos, ser esse o caminho mais confortável, essa vida apresenta-se como amputada. Por outro lado, uma vida sem qualquer tipo de fugas é demasiado impactante e exaustiva: não desejo epifanias diárias.
Passando à frente a questão das razões por detrás da nossa essência, foco no que a constitui. Nesta questão, tende-se a focar bastante nas características que definem uma pessoa, definindo uma pessoa pela seu sentido de humor ou falta dele, pela sua avareza ou humildade, etc… percebo a abordagem, mas estas características não são permanentes, oscilam no decorrer da tempo, ora se manifestam, ora não existem. Um bom prisma para esta questão é a do amor (no sentido de interesse pessoal,
não exclusivamente corpóreo- a palavra “amor” tem muita bagagem). Quando se ama alguém, não se ama estes traços de personalidade per se, pois são inconstantes.
Relativamente a esta questão, numa leitura recente fui introduzido ao conceito de singularidade. Este conceito pode-se referir por exemplo a uma obra de arte, quando esta, sempre indissociável de algum tipo de contexto (espacial ou cultural), tendo como fundamento características desse contexto, não se limita a apresentá-las (como um artefacto folclórico), mas sim a expô-las de uma forma própria, e é esta forma de expressão que se define como a sua singularidade, transformado bases particulares em elementos universais, que qualquer humano, apesar de distante do contexto originador, consiga “perceber”. Um exemplo concreto da singularidade é o género da literatura de viagem, em que apesar do leitor nunca ter visitado o local em questão, acompanha o autor com uma supreendente proximidade (devido à transformação que o autor faz da experiência vivida, num processo de universalização, focando no que nos une: ser humano). Mas o conceito de singularidade não se restringe à arte, as pessoas são também singulares e acredito que é isto que nos despoleta o interesse no contexto do amor. Não são os traços de personalidade que são objeto da nossa admiração, são a forma como são apresentados, de forma brusca ou discreta, e é isso que nos distingue e é isso que amamos no outro, são os momentos e expressões em que revelamos a nossa história de uma forma crua, simultanteamente própria e universal. O nosso ser encontra-se portanto na expressão, não nas características em si. Perante a singularidade do outro, sentimos um tipo de ligação (caso nos permitamos a isso) em que tudo que não é o presente se desfoca, em que os abismos colidem.
Estes são os momentos em que o romantismo se aproxima do real.
Ilustração: Léna Mačka