Categories
Rubricas

O Quotidiano como Lugar

Nina Grillo

Serão ainda algumas, senão quase todas, as manhãs do “de sempre”. Do café que cheira antes da cafeteira avisar; o iogurte matinal que sabe não tão bem, mas que até convence, com os seus 0% de gordura e 10g de proteína. Quem é que gosta genuinamente de iogurte, sem dúvidas nenhumas sobre o assunto? Fruta, sim. Café, com certeza. Iogurte, não sei bem, mas está lá, na prateleira de cima do frigorífico, e todas as manhãs tiro um. Depois, banho. Banho e contas de cabeça, sempre demasiado lentas, para tirar conclusões acerca da mais-valia de se lavar ou não o cabelo naquele dia. Vestir-me também acontece, mas só depois de perder 183 segundos a olhar para a imensidão que se torna o armário de roupas, nas primeiras horas do dia, mesmo que seja pequeno (e principalmente se o for), apenas para depois escolher as mesmas calças de guerra e algo sem grandes padrões para a parte de cima.São os rituais das pequenas coisas, que repetidamente nos mantêm à superfície, tipo boia que dança no lugar.

Para alguns muitos, nestes últimos tempos de casa, o que se segue passa por contemplar um ecrã, com vista para alguém que também olha para um ecrã, doutro lugar. Onde estará hoje o link do zoom? Intranet, teams, mail? Enumero todos estes com alguma preguiça, por pensar que  talvez pudéssemos perder menos tempo com este tipo de “lugares”.

Em 1992, Marc Augé, antropólogo francês, definiu os não-lugares como espaços opostos ao lar, sendo estes representados por espaços públicos de rápida circulação e pouca interação, lugares por onde se passa enquanto nos dirigimos a outros lugares. Aeroportos, estações de comboio, meios de transporte, quartos de hotel, supermercados.Nos dias de hoje, Augé defende que o não-lugar passou a ser contexto de todos os lugares possíveis, na medida em que os dispositivos nos acomodam num não-lugar constante. Torna-se difícil de fugir ao não-lugar, se o carregamos muitas vezes ao bolso. As telas, portáteis ou não, como qualquer janela, apresentam-nos um outro lado, frente a frente, mas fora de alcance. Visível, sem se poder agarrar com as mãos. Muitas vezes a cada hora, durante um dia inteiro, e em qualquer lugar do mundo, encontramo-nos numa posição paradoxal, que nos permite contactar com qualquer outro, na velocidade duma mensagem instantânea ou duma chamada de vídeo, mas continuamos sem tempo de o fazer. Ir ao encontro do outro tem acontecido de maneira cada vez mais acessível, mas com menos frequência; veloz, mas sempre com pressa. As telas desenvolvem-se no sentido de ficarem cada vez maiores e com mais definição, mas torna-se cada vez menor o espaço para o outro nestes píxeis. Estamos mais perto, mas longe.

Mesmo em casa (e cada vez mais, em casa), no espaço considerado o mais pessoal, e mesmo em tempos pré-pandémicos, já nos encontrávamos sentados diante da televisão, olhando ao mesmo tempo para o telemóvel, com outras pessoas à volta, a olhar para as respectivas telas, com os fones de ouvido postos. Todos a conviver (ou coexistir) com algum ruído de fundo. Cada um a habitar as linhas delimitadas pelo seu não-lugar, que segrega de um lugar comum, em que o outro se afirma e existe. A distância já existia, muito antes da distância de segurança, agora recomendada pelas autoridades de saúde.

É evidente que a pandemia veio acentuar ainda mais estas linhas, riscá-las com mais força. Pergunto-me muitas vezes qual será a força contrária adequada a exercer, nestes tempos. Há um verso de um poeta bastante novo, chamado Francisco Mallmann, que diz algo sobre as tantas coisas, que dependem de quantos passos se consegue dar, depois de se cruzar linhas imaginárias. Arrisco-me a dizer que Augé concordaria que as tais linhas tudo têm a ver com janelas (sejam elas buracos, fendas, frestas, olhos ou ecrãs); com o outro, do outro lado; e o impacto no um, que vai ao encontro deste outro (seja ele pessoa, sentimento ou lugar), apercebendo-se da sua existência, como ocupante de espaço e merecedora de tempo. Mas como cruzar linhas imaginárias, especialmente em tempos de vírus, sem representar um risco ao outro, a todos?

Se pensarmos que o computador está apoiado em cima duma mesa, com vista para outra janela, diferente das 19 janelas abertas no browser, talvez seja mais fácil desviar o olhar e lembrar que existe rua; ver a vizinha a estender a roupa e imaginar o que a espera dentro de casa; reparar que os aviões passam muito tempo antes do seu próprio som. Ser capaz de parar, abstrair, e de cultivar a curiosidade pelo outro lado da janela, é um músculo que se exercita, como tantos outros. Se estamos restritos ao lado de cá, por tempo prolongado, é porque a tecnologia assim o permite, mas também porque nos deixamos cair no desinteresse pelo que ocupa lugar à volta. Olhar como quem procura é diferente de olhar como quem vê. 

A verdade é que serão ainda algumas, senão quase todas, as manhãs do de sempre. Afasto o telemóvel e sei que é religioso, não falha: o café cheira antes da cafeteira avisar. Abro as persianas e não abandono a ideia de que nos pedaços de céu que não vejo, atrás das casas do outro lado da rua, pode haver pássaros que voam baixinho. A vizinha também já estende a roupa. Talvez desta vez possa levantar a mão e acenar.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *