Inês Maia
A última gotícula de chuva derrama-se e escorre pela vidraça, projetando-se no meu reflexo vago, como que contornando o aspeto enrugado da minha face esquecida, qual derradeira lágrima que acabarei por verter, finalmente…
Na vidraça poeirenta e com leves sulcos de desapego que condizem com a humidade esquecida destas paredes sóbrias e deste casarão imensamente solitário, vejo ao de leve, e como fatalíssima revelação, o rosto de alguém que desconheço.
Por muito que force a vista cansada e turva, mais não reconheço que uma mancha esquálida, enrugada, quase como que apagada, impressa na maldita vidraça feita em pó e angústia. Por fim, e para grande descontentamento próprio, revejo-me naqueles contornos obliquamente indistintos, soturnos, pálidos, fadados ao esquecimento… Sou eu quem imprime a imagem fantasmagórica e translúcida na vidraça deste cómodo…Sou eu, profundamente condenado às forças extrínsecas e inexoráveis do tempo.
Desvio o olhar fixo do vidro para evitar rever-me no meu próprio reflexo espelhado. No entanto, e como que peripécia malévola do destino, pouso, inconsequentemente, o olhar naquilo que identifico como sendo as minhas mãos, pernas, pés… o olhar foge-me para as mãos largas, enrugadas e brancas, para o peso corporal que afunda na fealdade da poltrona gasta, para a vontade esmaecida de alguém que outrora fora mais do que hoje é…A vida passa e leva consigo muitas coisas, mas ao fim da sua passagem tudo nos pesa e sufoca, como se o silêncio e o vazio fossem matéria de maior peso que tudo o que até então se julgava ser de relevo.
E o esquecimento…esse retira a propriedade de tudo aquilo que outrora julgava ser meu.
Em tudo isto revejo e pressinto uma imensa solidão, sinto uma profunda desconexão, como se para viver fossem precisas linhas claras e causais, e tudo neste momento estivesse numa dispersão tal que a vida, em si, perde o sentido de ser por si própria. Julgo que vivi a vida inteira para, finalmente, me cansar de a viver.
Resumido a um nada bem grande, abandono estes pensamentos para encontrar, com o olhar pesado e a mente angustiada, um retrato outrora bem conhecido de duas figuras direitas que a minha vista turva, envolvidas numa moldura de prata escurecida pelo tempo e que apenas serve para conferir um tom antiquado e triste ao meu preâmbulo mental.
Está distante…tão distante está este retrato quanto tudo me está neste momento.
A vida seguiu-se, os eventos enovelaram-se numa sequência interessante, mas que a cada dia me escorre das entranhas da memória, para então, perversamente, me escapar para sempre. Como me inquieta o esquecimento, o próprio e o de terceiros!
Na aldeia cujo nome se esqueceu e na qual os dias pesam e queimam e as noites avançam com despedidas mudas e sonolentas, vivi os meus dias até estes perderem o seu sentido e propósito e, desta forma tão ingrata, subsisti aos dias secos e vazios e ao medo das noites finitas.
Aqui tudo se deixou permanecer, calmo, estático, imutável, como se a natureza zombasse das marcas temporais que nos acometem e que nela apenas trazem beleza, costume e prolongamentos felizes de nova revitalização…a nós, o tempo deixa a sentença de não retorno e alarga a esfera da ausência humana.
A aldeia também ficou sem gente, envolvida numa atmosfera muda e monótona, sem alma ou gracejo que avive a chama do autêntico querer humano. Todos os dias são iguais: a mesma manhã rompe e lá nos plantamos defronte as janelas das nossas casas, com o olhar fixo lá fora, o corpo preso cá dentro. A nossa vontade é a de voar com aquele vento que sopra as árvores e traz melodia ao silêncio das manhãs. O nosso querer transpõe estas montanhas, este céu limitado, as restrições corporais que a velhice nos impõe. Vamos para além de tudo isto, numa ingenuidade de criança que nos ampara os minutos e traz alguma consolação. No hiato espacial entre a realidade e o sonho, somos mais felizes. Nem estamos tão embebidos na ilusão das quimeras que criamos, nem nos dissolvemos, derrotados, na desilusão dos dias…A vida, de tão longa e mestra, entregou-me, rendida ao tempo, esta sabedoria de vivê-la.
Lá longe, na casa antiga e gasta próxima da minha, vejo um corpo mudo erguer-se, parar e acenar-me lentamente. Ergo a minha mão trémula num gesto que me custa, mas que, dada a circunstância, sempre vale a pena, e saúdo o vulto amistoso lá longe.
Estas saudações matutinas cumprem o nosso dever para com os outros e somos levados a crer que afinal participamos de uma união que, apesar de maioritariamente silenciosa, ainda perdura no tempo, nos trouxe aqui e fez de nós algo mais do que julgávamos ser. Na irreparável monotonia de todos os dias, acostumei-me ao facto de não avistar caras novas, apenas as mesmas que, com o tempo, se vão desvanecendo e deixam de ser vistas à janela.
Como anseio pela novidade neste estágio final da vida! Como me admiraria se os campos e as ruas se tingissem de cores e gente novas, como me encantaria a oportunidade de cruzar um rosto novo e liso, iluminado pela vitalidade juvenil, arrastar o meu olhar consigo e levar um pouco de mim junto ao peito dilatado que a vida, nos seus primórdios, nos confere! Como me revejo incompleto e nostálgico em tudo isto que me falha!
Quando era jovem e a vida era a força motriz de todo o encantamento, quimera e ideal realização, julgava-me completo e diferente dos demais. Hoje, destinado a ocupar este lugar e esta janela, mudo e imóvel, apenas entregue ao burburinho exasperante das minhas constatações, reconheço que todos os rostos que daqui avisto são iguais ao meu que se espelha no vazio: rostos marcados pelo tempo, traços ocultando histórias fadadas a grandes amores não perpétuos, fatalidades várias e insignificâncias mantidas por forçosa noção de dever. Somos a mesma matéria, constituindo uma união tal e indecifrável que me faz crer que a irmandade é a base notória e incontestável de toda a humanidade e negá-la enquanto vivos revela a ignorância de quem usufruiu de uma visão que nunca soube usar.
Oxalá tivesse a minha vista de outrora e então depositá-la-ia empaticamente nestes olhos que me seguem lá longe nas janelas para então lhes beber a alma que lá vai dentro! Ter desta forma tão simples e mecânica a imensa vontade pulsátil de querer saber quem são, de onde vêm, para onde vão! Mas abdico de tudo isto, porque estou vencido e eu próprio, à margem de todos estes anos, nunca soube responder a nenhuma destas questões. Vivi sempre à sombra da ideal iminência de uma revelação própria que nunca se chegou a apresentar. E a frustração de outrora paulatinamente se converteu num comprazimento vergonhoso que, mesmo tendo diluído a chama que em mim habitava, nunca conseguiu apagar a tremenda dúvida que sempre me acompanhou.
E o instinto de fugir à dúvida monumental desvia-me a atenção novamente para o mesmo retrato esquecido. Dedico as minhas forças parcas em estender o braço pesado e recolher nas mãos largas a prata que emoldura o retrato. Toda a minha atenção conflui na imagem que tenho defronte a mim: duas figuras monocromáticas, estreitas e direitas, envergando leves sorrisos e olhares luzidios e fugitivos. Pressente-se um magnetismo qualquer, uma harmonia na forma como os dois corpos se dispõem na fotografia e como a sua individualidade se complementa na união que lhes subjaz no peito. Amam-se claramente, concluo por fim.
E nisto, a observação atenta da fotografia é-me interrompida pela feliz constatação de que há um pequeno pedaço de papel na parte de trás da moldura, preso e igualmente esquecido. Os dedos tremem-me, mas insisto em pegar-lhe e leio, por fim e com alguma dificuldade, as letras que nele vêm inscritas.
“Tive-te na minha vida. Assim, fiz tréguas com o tempo”.
O nome feminino vinha inscrito por baixo, numa assinatura elegante e ténue.
E este último despertou em mim a maior reviravolta dos meus dias. Sou como que arrastado para um estado de confusão e simultânea revelação. Tudo se me ilumina, nada finalmente se contradiz, as linhas outrora turvas daqueles rostos esquecidos iluminam-se-me e reconheço-me a mim e a ela neles. Aqueles leves sorrisos de quem viu o amor vingar sobre todas as demais coisas deixou-me perplexo e senti, como senti na maior parte da minha vida que não foi acometida pelo esquecimento, que pertencia a alguém, tal como alguém outrora me pertenceu.
Inspiro profundamente o perfume que exala daquele mísero pedaço de papel. A lavanda recorda-me o seu vestido a roçar no verde espraiado dos campos aos fins da tarde e o amor pulsar-me no peito largo e esta matriz colorida de um verde fresco e um laranja tardio revela-me, por sua vez, uma infância minha que julgava para sempre esquecida. Revejo a minha juventude percorrer aquelas montanhas e ruas, hoje mudas, outrora musicais. Reconheço nestes campos a alegria de outrora, quando os percorria a seu lado e plantávamos flores que haveriam de brotar nas primaveras da nossa união. Recordo-me, ainda que por um instante brevíssimo, que também lhe escrevia cartas cuja correspondência vinha em seu nome, elegantemente impresso na sua eterna assinatura, acompanhado do seu perfume que, ainda não o sabendo, um dia me haveria de trazer aqui, a esta recordação tão dócil quanto necessária do que era a vida e como sabia bem vivê-la!
No leito da sua morte, e em honrosa contemplação do nosso amor, deixou-me, como testemunho verdadeiro de todos esses anos, a promessa de que a vida lhe valeu a pena, pois havia feito “Tréguas com o tempo”. O mesmo tempo que lhe encurtou a vida, também lhe concebeu graciosa e afortunada ao atribuir-lhe a significação do amor.
Pela primeira vez em muito tempo, acode-me uma sensação quente de tranquilidade, a nostalgia enrola-se-me no peito, a saudade aperta-o, mas a recordação do nosso amor desfaz os mil nós que me haviam prendido este tempo todo!
Uma lágrima justa, quente e lúcida rola pelo meu rosto e vejo-a pingar o pedaço de papel que tenho em mãos, pelo reflexo, agora reconhecível, do meu aspeto na vidraça.
Os últimos raios de sol atravessam os sulcos e a poeira da janela.
Vejo a mancha turva do sol esconder-se e a sua sombra e últimos reflexos anunciarem a noite.
Nada disto me inquieta.
As dúvidas e a tormenta dissiparam-se.
A minha velhice era, afinal, uma virtude.
Finalmente, posso ir, partir de vez, leve e convicto de quem fui e sou, pois também eu fiz tréguas com o tempo.
Pintura: Vincent Van Gogh