Daniel Faria
Sinto-me cansado…. Completamente exausto, enquanto continuo a arrastar-me eternamente pelas ruas sombrias da minha mente, numa busca vã à procura do significado de ser eu. Sinto-me definitivamente uma mera sombra de vulto, incapaz de olhar o céu, por nele se espelhar o vazio indefinido que é a minha existência. Ah, como o corpo cai e o espírito despedaça-se. Olho-me ao espelho, dando-me conta estar a vaguear sem rumo pelos labirintos de mim, e dispo-me camada por camada, sílaba por sílaba. Olho-me, nu de todos os ornamentos, e sinto as queimaduras do tempo, ouço o medo de ter de fingir não me importar com a marca que deixo no mundo e saboreio, forçadamente, o choro do meu desespero. Ah, como arde no meu reflexo o desejo de encontrar alguém que me ame! Uma pessoa capaz de me ajudar a carregar a exaustão de ter de existir, capaz de acalmar a minha fúria, de preencher o meu vazio… Ah, como quero ser amado! Olho-me ao espelho e choro a minha ingenuidade, inconsciente da consciência de que o amor é a possibilidade mais impossível de todo o universo. Fecho os olhos, incapaz de continuar a olhar, e ponho, novamente, a máscara. Ah, como me sinto leve por não ser eu mesmo! E por ser tão realizador não me sentir oco, fundo-a comigo, converto-me na máscara e deixo tudo o resto tornar-se cinzas, transformar-se em terra. Eu serei, agora e para sempre, vento!
Sinto-me, por fim, vivo! Estico as asas e voo, deixando cair em direção ao nada cada tormento, todo e qualquer sentimento supérfluo. Corto, por fim, todos os fios que me prendiam, ó marioneta ingénua, à mera condição humana. Sinto, euforicamente, o desejo de voar mais alto do que alguma vez alguém alcançou a corroer-me, a tornar-se a base de toda a minha existência. Eu marcarei para sempre o Mundo. Eu transcenderei a mísera definição de se ser humano. Eu criarei vida!
E, assim, continuo a sonhar! Mas, talvez sonhar seja demasiado minúsculo, excessivamente terreno, para ser capaz de pintar o significado da minha vida. Sonhar é para aqueles que se contentam com a terra, que esperam, inocentemente, um dia conseguir bater as asas, sem, no entanto, terem a coragem crua de se transformarem em vento. Para eles sonhar é uma direção, um refúgio da aridez do solo. Eu não idealizo. Eu não me refugio. Eu sou, pura e simplesmente, o sonho! O meu corpo é pura ambição, o meu espírito pura sede de conhecimento. O sonho é o meu destino! Sem ele sou apenas pó. Por ele, violo crenças, esmago direitos, roubo órgãos, assalto túmulos, eclipso corações e coso, com ternura, os fragmentos de quem já foi para criar o corpo daquele que será o meu salvador! Humanidade? Arrependimento? Nada disso importa enquanto voo pelos desejos de mim e torno-me barro, encarno a chama e grito, com o peso de quem finalmente existe pela primeira vez, que eu sou a vida! Eu sou o conhecimento! Eu sou o Criador! Eu, finalmente, sou!
Ah, como é bela a minha invenção! Como serás invejada pela arte e pela vida!
E, por fim, abre os olhos. Levanta-se, movido pelo sopro que lhe dei e vejo o seu corpo desfigurado: a pele amarela que mal cobre os músculos; as veias pulsantes que o acorrentam à eterna condição de existir; os seus cabelos negros das vidas que roubou; a cara pálida pelo desespero, pela incógnita do ser ou não ser. Desejara-o com um ardor sem limite mas agora, que estava terminado, a beleza do sonho desvanecia-se, caía até se tornar em nada.
Ah, sinto-me a desaparecer… A voltar a não ser… Ah, como preciso de continuar a voar! Sinto a minha sombra a tornar a crescer. A crescer abissalmente enquanto me tenta arrastar. Ah, como é assustador o gélido calor do retrato por trás da máscara! Corro do abismo, cortando os pulsos, perdido num sufoco. Ah, vem morte! Abraça-me antes que me lembre de quem verdadeiramente sou!
E enquanto fujo de mim, encontro-me com os olhos da minha criação a penetrarem-me a alma, choroso de lágrimas que procuravam, angustiadamente, o conforto de alguém que o ame…. Horripilantemente, apercebo-me da ironia trágica do destino e rio-me. Rio-me, descontroladamente, como o sonhador tresloucado que sou. Rio-me enquanto arranco as minhas asas. Rio-me enquanto devoro a chama que virou cinzas, como se fosse capaz de afastar a escuridão que sou eu. Rio-me enquanto volto a tornar-me terra. Rio-me enquanto me sinto a despedaçar pela consciência de tudo o que fiz.
Eu fui barro. Eu fui fogo. Eu fui razão. Eu fui vida. Eu fui o sonhador… Eu sou o monstro.
One reply on “As Asas do Abismo do Frankenstein”
Bolo de dinheiro nessa party